A Justiça Federal no Pará aceitou a denúncia do Ministério Público Federal (MPF) e transformou em réus nove envolvidos em uma das mais graves fraudes ocorridas durante a pandemia de Covid-19: a compra superfaturada de 400 respiradores pulmonares que se revelaram imprestáveis para o tratamento de pacientes. A decisão, proferida pela 3ª Vara Federal Criminal, joga luz sobre um esquema que, segundo os procuradores, foi meticulosamente orquestrado por agentes públicos de alto escalão e empresários para desviar R$ 50,4 milhões em um momento de calamidade pública.
Entre os réus estão figuras centrais do governo de Helder Barbalho à época, como o ex-secretário de Saúde, Alberto Beltrame, e o então chefe da Casa Civil, Parsifal de Jesus Pontes. A ação penal (nº 1015947-12.2024.4.01.3900) detalha um enredo de corrupção que vai do direcionamento da licitação à destruição de provas.
A Anatomia de um Crime Anunciado
A investigação do MPF, conduzida pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), expõe a crônica de um desvio de dinheiro público. O processo não foi uma falha administrativa, mas sim uma construção deliberada para garantir o sucesso da fraude. Os pontos-chave do esquema são:
- Direcionamento Explícito: A empresa SKN do Brasil, sem qualquer autorização da Anvisa ou experiência na área médica, foi a escolhida. O contrato, segundo a denúncia, foi redigido pelos próprios contratados e ajustado pelo então chefe da Casa Civil, Parsifal Pontes, antes mesmo da abertura de qualquer processo licitatório.
- Pagamento Sem Garantias: Metade do valor total, R$ 25,2 milhões, foi paga antecipadamente, violando a Lei de Licitações que exige garantias para tal adiantamento. O dinheiro público foi transferido sem qualquer segurança de que os equipamentos seriam entregues.
- Superfaturamento de 80%: Laudos da Polícia Federal comprovaram que os respiradores foram adquiridos com um sobrepreço de 80% em relação a equipamentos similares no mercado. Para agravar, o governo pagou R$ 5,5 milhões por um frete que, na verdade, foi uma doação da mineradora Vale.
- Equipamentos Inúteis: Os ventiladores entregues não eram os modelos contratados e foram classificados como “inservíveis” para o tratamento de Covid-19, sendo mais adequados para fins pedagógicos. Ou seja, o Estado pagou uma fortuna por equipamentos que não podiam salvar vidas.
- Ocultação de Provas: O celular do ex-secretário Alberto Beltrame foi apreendido com todas as mensagens e arquivos trocados com outros investigados completamente apagados, numa clara tentativa de obstruir a justiça.
- Lavagem de Dinheiro: No mesmo dia do pagamento pelo governo, R$ 1 milhão foi transferido da SKN para uma empresa de fachada, configurando um mecanismo para o pagamento de propinas a servidores.
A Sombra do Poder: A Conexão com o Governador
Um dos pontos mais sensíveis da denúncia é a relação de proximidade entre o representante da SKN e o governador do Pará, Helder Barbalho, desde 2018. As tratativas para a compra, segundo o MPF, começaram diretamente entre o empresário e o governador via WhatsApp, muito antes de qualquer formalidade.
Apesar das evidências de contato direto, o MPF não denunciou o governador. O inquérito que o investigava foi arquivado em sigilo pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em outubro de 2023. A decisão do STJ blinda politicamente o governador, mas não apaga os fatos apresentados na denúncia contra seus ex-auxiliares, que apontam o início das negociações no mais alto nível do poder executivo estadual.
Esquema fraudulento e seus protagonistas
A denúncia, apresentada pelo MPF em fevereiro de 2025, apura irregularidades que teriam favorecido a empresa SKN do Brasil Importação e Exportação de Eletroeletrônicos, sem capacidade técnica ou liberação da Anvisa para comercializar ventiladores . Entre os investigados estão:

- Ex‑chefe da Casa Civil, Parsifal de Jesus Pontes
- Ex‑secretário de Saúde do Pará, Alberto Beltrame
- Ex‑secretário adjunto da Sespa, Peter Cassol Silveira
- Ex‑assessor de gabinete do governador
- Ex‑diretora de Administração da Sespa, Cintia de Santana Andrade Teixeira
- Ex‑assessora da Sespa
- Empresários e representantes da SKN do Brasil.

O MPF não denunciou o governador, já que o na investigação em seu nome foi arquivado pelo STJ em outubro de 2023, com tramitação em sigilo.
Reparação e Próximos Passos
Com a denúncia aceita, os nove réus serão citados para apresentar suas defesas. O processo, que teve o sigilo derrubado, permitirá que a sociedade acompanhe o julgamento.
O MPF pede não apenas a condenação à prisão por crimes como peculato, corrupção, fraude em licitação e organização criminosa, mas também a reparação integral do dano. Os procuradores exigem a devolução dos R$ 25,2 milhões pagos antecipadamente e uma indenização de R$ 500 mil por danos morais coletivos de cada réu. O argumento é que a fraude, em meio a uma crise sanitária sem precedentes, gerou um profundo abalo na confiança da população nas instituições, um dano que vai além do prejuízo financeiro.
Crítica jornalística
O esquema revela um cenário de corrupção em meio à crise sanitária, quando vidas eram perdidas por falta de oxigênio e respiradores adequados. A manipulação da licitação, combinação de interesses e enriquecimento ilícito aponta para um colapso moral e institucional. Enquanto a sociedade agonizava, grupos com acesso ao poder se organizaram para lucrar com a tragédia – um crime que vai além dos números, e toca o âmago da dignidade pública.
O início do julgamento será um termômetro da Justiça brasileira: até onde está disposta a punir os que se aproveitam da fragilidade social em nome do lucro? A resposta dessa ação penal terá impacto direto no sentimento de controle social e na confiança nas instituições.